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Células do bebé ficam no corpo da mãe “para sempre” mesmo após um aborto?

12 Jan 2024 - 10:17
impreciso

Células do bebé ficam no corpo da mãe “para sempre” mesmo após um aborto?

Alega-se no Facebook que, “mesmo que o bebé tenha morrido durante a gravidez”, as suas células ficam no organismo materno “para sempre”

Segundo a informação divulgada no vídeo, o “termo científico” para este fenómeno é “microquimerismo fetal”. 

O autor da publicação sugere ainda que este fenómeno ocorre “a partir da terceira semana de gestação”, altura em que “as células do bebé ligam-se ao corpo da mãe”. Estas alegações estão comprovadas do ponto de vista científico?

É verdade que as células do bebé ficam no organismo materno “para sempre” mesmo após um aborto?

Em declarações ao Viral, Alexandra Matias, assistente graduada no departamento de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de São João e professora catedrática na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), adianta que, de facto, “há várias provas que indicam que há células do feto que passam para a mãe durante a gravidez” (ver aqui, aqui, aqui e aqui).

Aliás, sabe-se que “existe um tráfego bidirecional de células durante a gestação humana normal”, ou seja, “há células fetais que ficam na mãe” (microquimerismo fetal), tal como “também há células maternas que entram no feto” (microquimerismo materno), acrescenta a médica. 

Ainda assim, o prefixo “micro” indica que “a quantidade de células que passa é pequena”, justifica a médica consultada pelo Viral.

Quando o bebé nasce, “as células que ficam com a mãe são poucas”, refere a professora da FMUP. 

Mas, “quando vem um segundo bebé, se o pai for o mesmo, estas novas células sobrepõem-se às outras, em maior quantidade” (apesar de as células do primeiro bebé ainda estarem presentes).

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Por outro lado, “se o pai não for o mesmo, tudo se passa como se fosse uma primeira gravidez”, conclui.

Apesar de o microquimerismo fetal ser um conceito conhecido e estudado, a publicação em análise contém algumas imprecisões. Explicamos porquê em 3 pontos:

1 – As células fetais só se misturam com as maternas numa fase mais avançada da gestação 

Ao contrário do que é dito na publicação partilhada, a evidência científica mostra que a transferência de células fetais para a mulher começa entre a quarta e a sexta semana de gestação e continua durante toda a gravidez (ver aqui e aqui).

Por isso, em caso de aborto, a mulher só poderá ficar com células fetais no organismo se a perda gestacional ocorrer depois desse período. Isto porque, numa fase muito inicial, frisa Alexandra Matias, “ainda não há uma quantidade de células suficientes”, sendo “preciso algum tempo, durante a gravidez, para elas irem passando e para haver circulação suficiente entre os dois seres”.

2 – Não se sabe se todas as mulheres experienciam o microquimerismo fetal

Há, de facto, registo da presença de células fetais em organismos maternos, mesmo após o parto. Aliás, a investigação sugere que o microquimerismo fetal em humanos é comum e parece ser tão frequente como nos animais (ver aqui). 

Contudo, não se sabe ao certo se todas as mulheres retém células fetais. Aliás, segundo um trabalho de 2020, crê-se que “a persistência e a abundância do microquimerismo fetal dependem de numerosos fatores, incluindo as relações imunogenéticas entre a mãe e o feto e, talvez, entre os habitantes pré-existentes do sistema materno, da sua mãe ou de filhos anteriores”.

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3 – Não há evidência que comprove que as células ficam na mulher “para sempre”

Segundo Alexandra Matias, sabe-se que as “células fetais persistem no sangue periférico materno por muitos anos após a gestação”. Aliás, isso foi “demonstrado em autópsias de mulheres em menopausa”, acrescenta. 

No mesmo sentido, a investigação de 2020 (referida anteriormente), reporta que alguns “estudos sobre mulheres que deram à luz crianças do sexo masculino apresentaram uma alta incidência de células masculinas no sangue após o parto”. 

Inclusive, “algumas dessas mulheres exibiram células masculinas nos seus tecidos até 27 anos após o parto”, escreve-se. Sendo que esta “permanência foi relatada em 30 a 50% de mulheres que tiveram um filho do sexo masculino”.

Isto acontece, refere-se noutro estudo recente, porque “as células fetais atravessam a barreira placentária e entram na circulação materna, onde podem sobreviver, migrar e integrar-se em diferentes tecidos maternos”.

Nos seres humanos, o microquimerismo fetal foi encontrado “em vários órgãos, como pele, apêndice, fígado, cérebro, pulmão, coração, mama, glândulas suprarrenais, tiroide, gânglios linfáticos, glândulas salivares, útero, vesícula biliar e intestino”, acrescenta-se.

Contudo, não há dados que permitam garantir que as células fetais ficam no organismo materno “para sempre”, como é sugerido no post de Facebook em análise.

Qual a possível influência das células fetais no organismo materno?

Apesar de não ser muito robusta, a evidência atual sugere que o microquimerismo fetal pode ter possíveis efeitos positivos e negativos na saúde materna. Alexandra Matias fala em dois: a contribuição para o desencadeamento de doenças autoimunes nas mulheres e, por outro lado, o aumento da longevidade.

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Existem estudos – como um trabalho de 2017, intitulado “Late pregnancy – a clue to prolonging life?” – que indicam que “a passagem de células muito jovens para um corpo mais velho rejuvenesce-o e aumenta a longevidade da mulher”, esclarece a médica. 

Além disso, “parece que, quanto maior for a diferença de idade entre o feto e o organismo materno, maior será a capacidade de reparação dos tecidos e, consequentemente, maior será a longevidade materna” (ver aqui e aqui).

Noutro plano, tem sido estudada a possibilidade de o microquimerismo fetal contribuir para o surgimento de doenças autoimunes na mulher. Como?

Alexandra Matias explica que, durante a gravidez, o sistema imunitário materno desenvolve uma tolerância ao feto, que deixa de ter após o parto. Esta tolerância pode explicar o facto de alguns sintomas de doenças autoimunes diminuírem durante a gravidez, em algumas mulheres.

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Nesse sentido, foi levantada a hipótese de que as células fetais na circulação materna poderiam ser importantes para influenciar a doença autoimune na gravidez e no pós-parto. 

Por exemplo, salienta a especialista, “as tiroidites ​​são das patologias mais frequentes na mulher, já alguns anos depois de terem filhos”. Por esse motivo, Alexandra Matias admite que, na sua prática clínica, faz questão de receitar “ecografias à tiroide” algum tempo depois de as suas pacientes serem mães.

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